Assucena Assucena faz resenha do livro “Ponciá Vicêncio”

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Assucena Assucena faz resenha do livro “Ponciá Vicêncio”

Em sua coluna no portal Vogue Brasil, cantora evidencia profundas questões da obra de Conceição Evaristo, como o racismo estrutural sistêmico

 

Em seu último texto feito para sua coluna semanal no portal Vogue Brasil, Assucena Assucena, integrante do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira, escolheu como tema fazer a resenha de uma das obras de Conceição Evaristo. Maria da Conceição Evaristo de Brito é uma romancista, escritora e poeta mineira, que atualmente dá aulas na Universidade Federal de Minas Gerais.

Ponciá Vicêncio, um de seus grandes romances, foi o livro escolhido por Assussena para ser abordado. Com um plano de fundo debruçado em questões existenciais profundas, a obra conta a história da protagonista homônima ao título, uma mulher negra, campestre, artista, que é assolada por diversos problemas e dificuldades sociais e emocionais. Confira aqui na íntegra a resenha:

 

Ponciá é uma jovem mulher preta, do campo, que nascera com o genuíno dom de esculpir a terra. Dizem que foi assim que Deus criou a humanidade, esculpindo-a do próprio chão. Ponciá com suas mãos imitava Deus. Como todo artista, ela produzia forma, imaginação e sonho. Porém uma fenda existencial se apodera de Ponciá, e vai ganhando tamanho ao longo da trama.

Ponciá desenvolve um longo processo de alheamento de si mesma; primeiro por não se reconhecer no próprio nome. É que a vida parecia já ter decidido, muito, acerca dos contornos que definiriam sua existência. Ponciá não suportava ter consciência de seu injusto destino. Ela não suportava, ter que esbarrar em decisões maiores que suas escolhas, pois tinha certeza, que ela própria era bem maior e melhor que tudo aquilo: “Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio”.

Não bastava o destino lhe arrancar os sonhos, ele também foi lhe pregando ausências, exatamente como aconteceu à sua mãe, Maria Vicêncio. O vazio que se abre em Ponciá é alimentado por uma sequência de ausências, por uma série de desapropriações impostas, as quais vão se acumulando tragicamente.

Eu diria que a própria memória se personifica como narradora-personagem do texto, com relampejos, digressões e retomadas, desobedecendo a linearidade cronológica, com a desenvoltura da lembrança. A história se desenrola na primeira metade do século XX, no contexto do pós-abolição. O cenário se alterna entre o campo e a cidade, apontando para o drama negro do êxodo rural compulsório e consequentemente para o início das favelas. Na medida que as personagens vão assumindo seu lugar na ribalta, os fatos narrados denunciam a violência física e psicológica a que os descendentes dos escravizados eram submetidos e desse modo, escancara o descaramento de uma abolição inconclusa.

A abolição inconclusa pelo Estado Brasileiro alijou pessoas negras de direitos fundamentais, como o direito à terra, privando-as de autonomia econômica e deixando-as reféns das perversas estruturas escravocratas. Por isso, cada indivíduo constrói seus subterfúgios, ao esbarrar nas injustiças do sistema. No caso de Ponciá, uma das saídas foi a esperança de alterar a rota de seu destino migrando para a cidade, depois da malograda tentativa, ela desenvolve outra saída como seu Vô Vicêncio, o subterfúgio psicológico, a triste saída de si mesma. Evaristo não subestima quaisquer que sejam as personagens, atribuindo-lhes, sempre, complexidade psicológica, pois lhes esmiúça a consciência, os sentidos e a memória coletiva.

Apesar de tudo, ela sempre se lembrava… essa memória obstinada era quem lhe agarrava à vida:

“Ponciá sabia dessas histórias e de outras ainda, mas ouvia tudo, como se fosse pela primeira vez. Bebia os detalhes remendando cuidadosamente o tecido roto de um passado, como alguém que precisasse recuperar a primeira veste, para nunca mais se sentir desamparadamente nua”.

“Acumular idas, partidas e ausências” não pode ser destino de quem quer que seja. Precisamos nos responsabilizar pela dor de Ponciá Vicêncio, como indivíduo, como sociedade e como Estado, com a urgência que a história nos impõe. Conceição Evaristo nos aponta bem o caminho e nos oferece a oportunidade de sentir afetivamente a existência do outro, aguçando-nos a empatia, com o zelo de quem conta uma boa história. Doeu e por isso eu chorei, mas em Ponciá Vicêncio outra oportunidade nos é dada: a beleza sempre possível do reencontro. Salve Evaristo!